Existe um controvertido site na Web intitulado WikiLeaks que coleta e publica vídeos e documentos altamente sigilosos. O seu fundador Julian Assange – considerado pela Forbes o 68º mais poderoso do mundo -, apresenta-se no cenário mundial com sua WikiLeaks – uma organizaçãointernacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em seusite, posts de fontes anônimas, documentos, fotos e informaçõesconfidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis.
A organização informa ter sido fundada por dissidentes chineses,jornalistas, matemáticos e tecnólogos dos Estados Unidos, Taiwan, Europa, Austrália e África do Sul -, como um Ellsberg (homem que vazou para aopinião pública um bloco de documentos altamente secretos, do governodos EUA, sobre a Guerra do Vietnã, conhecido como The Pentagon Papers[Documentos do Pentágono]) do século 21. Trata-se de um homem semnacionalidade, e divulga, como recebeu, pela Grande Rede, a informaçãoque tem e deseja distribuir. Sua organização deixa vazar documentos emescala jamais vista antes, enormemente mais ampla que as 1.000 páginados Documentos do Pentágono.
Revela, inclusive, informações novas sobre assassinatos e tortura no Iraquedepois de Abu Ghraib, entre elas 66.081 mortos iraquianos civis, provavelmente ainda mais chocantes que as informações contidas nosDocumentos do Pentágono.
O JUSTICEIRO
Assange em uma foto deste ano, tirada em lugar não divulgado na Austrália.
O hacker sabe que é um alvo a abater e leva muito a sério a sua segurança: está sempre em movimento, não dorme nos mesmos locais duas noites seguidas, paga todas as despesas em dinheiro, muda de aparência frequentemente e só fala através de telemóveis com sistema de encriptação (e, mesmo assim, troca de número como quem troca de camisola…).
Seu site tornou-se mundialmente famoso (e inimigo nº 1 doPentágono) depois de ter revelado, em Abril deste ano, o vídeo de uma operação militar norte-americana em que vários civis desarmados são abatidos (incluindo dois jornalistas da agênciaReuters). Em em abril, 90 mil documentos secretos sobre a atuação dos EUA na guerra do Afeganistão, em julho, milhares de documentos secretos sobre a guerra do Afeganistão foram tornados públicos (morte de mais de 100 mil iraquianos desde 2003), embaraçando as relações entre os aliados e alguns ‘países amigos’, como o Paquistão. Agora revelaram-se (mais) verdades inconvenientes sobre a guerra do Iraque.
As publicações dão amplo destaque – mais de 400 mil documentos secretos sobre o verdadeiro número de vítimas mortas – 100 mil iraquianos desde 2003 – e o recurso a técnicas de tortura.
A origem do debate foi a divulgação, pelo WikiLeaks, de dois vídeos comáudio que mostram o ataque, a partir de um par de helicópteros Apachesdo Exército americano, a um grupo de pessoas em Bagdá, a capital do Iraque. Um dos vídeos é extenso, o outro é a versão curta.
Em julho de 2007 os disparos mataram 12 pessoas, além de ferir duascrianças. Entre os mortos estavam dois funcionários da agência de notíciasReuters; um fotógrafo, de 22 anos, e seu assistente e motorista. A câmarado fotógrafo foi confundida com uma arma e a turma toda, que vinhacaminhando pelas ruas de Bagdá, foi tomada como “insurgentes”, a designação dos que combatem a presença americana no Iraque.
Sobre esse homem que vazou a informação flam que seria alguma coisaentre um idiota e um traidor; e ninguém comenta o conteúdo das novasinformações.
Todo o noticiário sobre WikiLeaks parece concentrado sobre acusaçõesde crime sexual que teria sido praticado pelo autor dos vazamentos na Suécia, ou sobre notícias de que o homem teria personalidade de ditador, oque teria levado vários dos voluntários que teriam trabalhado com ele adesistir da missão.
Mídia alguma se dedica a repercutir o conteúdo dos arquivos vazados. Daniel Ellsberg diz ao New York Times que esperou “quarenta anos poralguém que divulgasse informação secreta em escala que realmente fizessediferença”. Mas a verdade vazada por WikiLeaks parece não fazerdiferença alguma. Fato é que, sim, o mundo mudou muito entre os anos de Ellsberg e os anos de Assange.
Hoje, quando a nova informação que Assange afinal expôs ao mundodeveria ter provocado protestos de massa e clamor crescente portransparência e responsabilidade em tudo que os governos digam aoscidadãos através da mídia, a espantosa maioria dos cidadãos eabsolutamente toda da mídia só faz falar de/sobre Assange, e em quasetodos os casos contra Assange.
É muito evidente o motivo pelo qual interessa à mídia e aos críticos de Assange desacreditá-lo. Ao mesmo tempo, se se considera que Assange reconheceu que manteve relações com “fãs”, mas que foram relações desexo consensual, é também suspeitamente evidente o interesse que muitospodem ter em desacreditá-lo “em geral“, apresentá-lo, em geral, comodoido (além de estuprador perverso).
Os norte-americanos esqueceram, completamente, que Martin Luther King, Jr. envolveu-se em mais de uma aventura extraconjugal. É marcagrave em seu passado. Mas a vida e a obra que construiu, a mensagem desua vida, encontraram eco numa geração inteira de norte-americanoscomprometidos com o projeto da mudança social.
Assange é hoje apátrida, sem casa, à procura de um país que o receba (perdeu recentemente a cidadania sueca); e o New York Times descreve-oliteralmente como “fugitivo”, depois de rápida passagem pela Islândia. MasAssange é excluído hoje, sobretudo, porque é figura de “sem-tetoideológico”.
É… é por aí que se entende até onde vai a toca do coelho branco. Mas, sem-teto ideológico? Como imaginar nessa condição de desamparo ideológico alguém que entra nos bastidores do poder e revela a quem interessar possa as entranhas do jogo do totalitarismo e toda a perversidade inerente a esse mesmo jogo? Que esse alguém seja radicalmente desacreditado, sim, é plenamente possível admitir. Porém, a condição de desamparo ideológico só se entenderia em situação de crise de idéias e em um cenário de mistificação/virtualização da realidade e negação da História. Talvez já tenha mesmo chegado a hora de se trazer ao palco a possibilidade de um rigoroso debate entre Orwell e Huxley. Seja como for, parece-me que em outras circunstâncias, ou quem sabe, num mundo menos nazistificado e nazistificante, esse homem seria um herói ou, no mínimo, um Nobel da Paz.
Assange em uma foto deste ano, tirada em lugar não divulgado na Austrália. O hacker parece viver clandestino e só fala com repórteres por telefone, que muda de número constantemente